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segunda-feira, 29 de dezembro de 2025 -

O eclipse da ciência americana

“A extrema direita trava uma guerra contra energias renováveis, direitos civis (…) A erosão institucional encontra seu complemento na erosão moral”

Artigo de Celso P. de Melo, professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco. Leia na TVT News

“Quaisquer que sejam nossos desejos, inclinações ou paixões, nada disso altera o estado dos fatos e das evidências”. A advertência feita por John Adams, em 1770, ao defender soldados britânicos acusados de matar civis em Boston, ecoa como manifesto contra o obscurantismo. Ele assumiu a causa mais impopular de sua época porque acreditava que razão e Estado de Direito não podem ceder à histeria. Era esse o espírito iluminista que moldaria a jovem democracia americana: a separação entre Igreja e Estado, o primado da razão e a legitimidade do questionamento – inclusive da autoridade – tornaram-se pilares da república e do que hoje chamamos de método científico.

Esse legado iluminista se materializou, no século XX, em políticas de Estado que reconheceram a ciência como infraestrutura estratégica da democracia e do desenvolvimento. A autonomia universitária, o financiamento público estável, a proteção a servidores técnicos e a separação entre evidência científica e decisão partidária não eram acidentes: eram escolhas conscientes, herdadas da convicção de que fatos não se submetem à vontade política. O sistema científico americano floresceu porque foi institucionalmente blindado contra dogmas, inclusive os do poder.

Ao longo do século XX, os EUA colheram os frutos dessa arquitetura intelectual. Suas universidades tornaram-se referência mundial – Harvard, MIT, Stanford, Caltech, Berkeley – e seus laboratórios atraíram talentos de todos os continentes. A política de imigração voltada para pesquisadores e estudantes estrangeiros foi decisiva para esse avanço. O país atraiu gerações de imigrantes altamente qualificados que moldaram a face do século: o Projeto Manhattan, os semicondutores, a informática, a biotecnologia, o sequenciamento genético. Não por acaso, cerca de 40% de todos os Prêmios Nobel de ciência foram concedidos a pesquisadores baseados nos EUA – um terço deles não nascidos no país.

De Einstein e von Neumann à Karikó e Schally, passando por Fermi, Yang e Lee, a ciência americana foi, em larga medida, obra de imigrantes que reinventaram áreas como física, medicina, biologia e computação, encontrando no país um terreno fértil para pensar e criar. Essa combinação de liberdade intelectual, diversidade e recursos alçou os EUA à liderança científica mundial, em um impulso que transformou a academia e a própria geopolítica. O século americano foi também o século da ciência americana.

Hoje, porém, esse fluxo se inverte. Entre 2016 e 2021, os novos vistos estudantis caíram mais de 40%, e programas de pós-graduação nas áreas de exatas e engenharia registraram a menor proporção de doutorandos internacionais em duas décadas. A hostilidade crescente do governo a pesquisadores e estudantes estrangeiros agrava o quadro: universidades relatam dificuldade para atrair e reter talentos diante de políticas migratórias restritivas e de um clima político adverso. A evasão de cérebros tornou-se preocupação real, sobretudo em computação, engenharia, biomedicina e matemática.

O impacto dessa retração vai além da academia. A perda de liderança científica compromete diretamente a competitividade econômica dos Estados Unidos, ao enfraquecer cadeias de inovação que conectam pesquisa básica, desenvolvimento tecnológico e produção industrial. Setores estratégicos – como semicondutores, biotecnologia, inteligência artificial e energias limpas – dependem de universidades fortes, financiamento estável e circulação internacional de talentos. Ao minar esses pilares, o país fragiliza sua capacidade de responder a desafios globais como a transição climática e futuras pandemias.

Quando ciência vira alvo, o prejuízo aparece em duas escalas ao mesmo tempo: no cotidiano (saúde, escola, clima) e na estratégia (inovação, padrões tecnológicos, poder internacional). Mas esse movimento não ocorre no vácuo: integra um projeto político que vem reconfigurando o Estado. Um edifício antes sólido começa a ruir – e não por acaso, mas por escolhas deliberadas. Uma nova direita radicalizada, que combina neoconservadorismo, fundamentalismo religioso e um ecossistema digital inflamado, busca redesenhar o Estado segundo uma lógica abertamente ideológica.

Project 2025, manual de um eventual segundo governo Trump, e o Project Esther, de matriz teocrática, defendem a eliminação do Departamento de Educação, a submissão de agências reguladoras – da proteção ambiental à saúde pública – e até da NOAA, responsável por previsões climáticas e segurança meteorológica, ao controle político direto, além da substituição de servidores de carreira por “quadros leais”. O Project 2025, elaborado por think tanks ligados à Heritage Foundation, propõe a reestruturação do Executivo para concentrar poder na Presidência, desmontar o Estado técnico e subordinar a produção de dados e evidências científicas a critérios ideológicos. Já o Project Esther articula grupos religiosos fundamentalistas que defendem a substituição de currículos laicos por conteúdos alinhados ao cristianismo conservador, rejeitando explicitamente o ensino da evolução, da educação sexual e da ciência climática.

Essa guinada foi viabilizada pela retomada de dispositivos normativos que permitem recategorizar servidores e demiti-los sem proteção legal, abrindo espaço para um Estado partidário em lugar do Estado ancorado em expertise técnica. O precedente é claro: em 2019, a Casa Branca pressionou a NOAA a endossar uma afirmação falsa do Presidente Trump sobre a trajetória do furacão Dorian, resultando na censura de seus próprios meteorologistas.

Esse projeto político vem acompanhado de uma onda de proibições de livros – dezenas de milhares de casos de banimento em escolas públicas desde 2021 – e de perseguições a professores por ensinarem evolução, história da escravidão ou mudanças climáticas. Em vários estados, currículos de ciências foram reescritos para minimizar o aquecimento global ou omitir o papel humano nas emissões. Trata-se de um ataque frontal ao que restava de consenso científico na educação pública. Ao mesmo tempo, universidades relatam crescente intimidação política e retração de liberdades acadêmicas – especialmente em cursos de ciências sociais, clima, saúde pública e raça.

O conflito com a ciência, que nunca esteve ausente da vida política americana –em 1925, o ensino da evolução chegou a ser levado aos tribunais – encontrou na internet uma máquina de amplificação. Hoje, negar o aquecimento global tornou-se política pública em estados governados por trumpistas. O slogan “Drill, baby, drill” virou mantra energético: exaltar combustíveis fósseis como patriotismo e tratar regulações ambientais como ameaça à liberdade. A retirada do país do Acordo de Paris foi a face externa de um movimento interno ainda mais profundo.

A pandemia de COVID-19 funcionou como prova de estresse: quando evidências viram bandeiras partidárias, a resposta pública perde coordenação e confiança. A erosão institucional que começou ali não se dissipou; migrou para vacinas de rotina, para a vigilância epidemiológica e para a credibilidade das agências reguladoras. No campo da saúde, o movimento antivacina vinha ganhando força há anos, impulsionado por figuras como Robert F. Kennedy Jr. – um dos maiores propagadores de desinformação sobre o tema. Esse avanço encontrou seu ponto de inflexão quando, em fevereiro de 2025, Kennedy passou a ocupar posição central na condução da política federal de saúde, com influência direta sobre as agências reguladoras do setor. Sua nomeação deu ao negacionismo uma institucionalidade inédita: o discurso antivacina deixou de ser marginal. Os efeitos de longo prazo desse movimento já eram visíveis antes mesmo da posse. Em 2024, os EUA registraram mais de 1.300 casos de sarampo – o maior número em trinta anos – concentrados sobretudo entre crianças não vacinadas. Doenças antes eliminadas voltaram a circular com a queda persistente da cobertura vacinal.

Enquanto isso, a alt-right – um conjunto heterogêneo que vai de libertários radicais a supremacistas e influenciadores hiperativos – trava uma guerra contra energias renováveis, direitos civis, políticas de diversidade e pesquisas sobre desigualdades raciais. Relatórios ambientais desapareceram de sites oficiais; dados foram adulterados; estudos sobre violência policial foram censurados. O objetivo permanece o mesmo: substituir ciência por ideologia.

A erosão institucional encontra seu complemento na erosão moral. A advertência de Benjamin Franklin – “Quem abre mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merece nem liberdade nem segurança” – nunca foi tão atual. Se na ocasião ele denunciava a troca de autonomia institucional por conveniência política, hoje o paralelo é evidente: ao submeter agências técnicas ao controle ideológico e transformar servidores de carreira em peças descartáveis, o trumpismo sacrifica liberdades estruturantes em troca de segurança ilusória. Para o cidadão comum, isso significa menos proteção ambiental, menos segurança sanitária e escolas mais vulneráveis. Na prática, isso se traduz em alertas meteorológicos menos confiáveis em eventos extremos; em decisões locais de saúde pública mais expostas à pressão política; e em salas de aula onde temas básicos – evolução, vacinas, clima – deixam de ser ciência para virar “opinião”. O custo não é abstrato: é tempo de resposta, vidas e dinheiro público gasto para remediar o que poderia ser prevenido.

O paradoxo é gritante: a ciência que impulsionou a inovação, a prosperidade e a projeção global dos Estados Unidos passou a ser tratada como obstáculo quando suas conclusões entram em conflito com agendas políticas, interesses econômicos de curto prazo ou dogmas ideológicos. A mesma nação que levou o homem à Lua, inventou a computação moderna e acolheu refugiados intelectuais agora tolera perseguição a bibliotecas, obscurantismo na academia e desinformação sancionada por autoridades. Democracias não se rompem apenas por golpes; quebram-se por dentro, quando abandonam seus fundamentos. E nenhum fundamento foi mais central para o projeto americano do que o compromisso público com a razão.

O resto do mundo observa – e não sem inquietação. Uma ciência americana fragilizada não significa apenas um retrocesso doméstico: significa a perda de um contrapeso essencial na arquitetura global de conhecimento, inovação e democracia. Sem a liderança científica dos EUA, a balança moral e estratégica do Ocidente se desequilibra, abrindo espaço para aventuras autoritárias e para uma nova era de instabilidade internacional.

China e União Europeia, por vias institucionais distintas, tendem a reagir de maneiras diferentes, mas convergentes no efeito: ampliar investimento em pesquisa estratégica, atrair talentos e disputar a definição de padrões tecnológicos. Em áreas como IA, biotecnologia, semicondutores e transição energética, liderança científica não é prestígio – é poder de mercado, cadeias produtivas e capacidade regulatória. Se os EUA recuam, outros avançam e passam a ditar normas, plataformas e prioridades globais.

A história mostra que a ciência sempre perde quando é subjugada à doutrina. O lysenkoísmo na União Soviética, ao sacrificar a genética em nome de uma ortodoxia política, ilustra como a interferência ideológica pode impor atrasos científicos duradouros. Em contraste, como mostrado nas respostas diferenciadas durante a recente pandemia, países que reforçaram a autonomia científica após grandes crises colheram ganhos institucionais e tecnológicos consistentes. A questão que se coloca aos Estados Unidos não é se erraram, mas se ainda estão dispostos a corrigir o rumo antes que o dano se torne estrutural. O Iluminismo americano apostava que sociedades guiadas por fatos, e não por dogmas, produziriam liberdade e prosperidade; essa promessa hoje está sob ataque. Nenhuma democracia resiste quando a ignorância se converte em política de Estado.

*O artigo expressa exclusivamente a opinião do autor / Publicado orginalmente no Jornal da Ciência

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